[texto de José Eduardo Agualusa]
Quando nasceste, e eu cortei o cordão que te unia à tua mãe,
murmurando baixinho, eu te inauguro, minha filha, bem-vinda à vida, eu
sabia que havia homens, lá fora, a assassinar outros homens, ou a
prepararem-se para assassinar outros homens; havia homens ocupados a
adestrar adolescentes na arte da guerra (é como lhe chamam); havia
homens concentrados na difícil tarefa de torturar prisioneiros, e outros
tantos engendrando máquinas destinadas a mutilar, a ferir e a matar
inocentes.
"Acho uma irresponsabilidade ter filhos neste tempo",
disse-me um amigo, numa tarde de sol resplandecente, e eu concordei,
distraído, ou talvez porque fizesse muito calor, e me seja sempre
difícil encontrar argumentos quando a luz cai em excesso. Certas coisas,
como se sabe, vêem-se melhor na escuridão. Agora, no silêncio da noite,
não me custa reconhecer que sim, que vivemos tempos cruéis – mas não o
foram sempre? Existem hoje, aliás, mais territórios a salvo da
crueldade, e, sobretudo, da crueldade enquanto sistema, do que, e nem
preciso recuar séculos, no ano em que a minha mãe nasceu. A história da
humanidade é uma história da crueldade; mas é também uma história contra
a crueldade.
Houve um tempo em que havia no mundo mais torturadores do que poetas.
Hoje, tenho a certeza, são mais os poetas do que os torturadores,
embora – também sei disso – haja quem acumule funções. Gente com
múltiplas aptidões. Conheci alguns maus poetas que enquanto escreviam os
seus maus poemas se revelaram bons torturadores.
Temos cometido crimes que nenhum verso redime.
Mas – caramba! – também acrescentámos beleza ao mundo. Penso em tudo
aquilo que te quero mostrar, em todos os lugares que quero revisitar e
descobrir contigo. Coisas simples, como o fulgor das tempestades, lá, no
planalto, em meio ao verde exultante do capim. A curva de um ribeiro
onde fui feliz na minha infância. Os ovos moles de Aveiro. Algumas
canções de Lhasa. Abdullah Ibrahim tocando (e cantando) "Ishmael". Uma
buganvília, velha amiga minha, muito bela, que na primavera é a primeira
a encher de cor o Jardim Tropical, em Lisboa. O pôr-do-sol no Arpoador.
O Museu Picasso, em Barcelona. O sorriso do teu irmão. O mar, um leve
lago azul-anil, de Angra dos Reis. Saltar de asa-delta da Pedra Bonita.
Ah!, e haveremos juntos de subir o Quanza, até Massangano, e de descer o
Nilo, desde Ondurman (será possível?) até ao Cairo, e o imenso
Amazonas, desde Iquitos a Belém do Pará. Havemos de lançar papagaios ao
vento e, mais tarde, talvez me possas ensinar a dançar os ritmos que
então estiverem na moda. Só uma mulher que me ame muito me conseguirá
ensinar a dançar o que quer que seja.
Ao contrário do que dizia o meu amigo,
naquela tarde de sol, mas sem esperança, ter filhos hoje é uma
demonstração de responsabilidade. No instante em que te dei as boas
vindas, às 17 horas e 17 minutos de um domingo angolano, e segurei a
tesoura e cortei o cordão que te unia à mãe, foi também a mim que
inaugurei. Um filho é sempre um recomeço. Um filho é a maneira que temos
de reiniciar o mundo. Sofrerás, eu sei, com a crueldade e a injustiça
dos homens. Em certas manhãs acordarás sem ânimo. Talvez então te
questiones sobre os motivos porque te trouxemos aqui. Trouxemos-te (é o
que sinto) para que nos ajudes a sermos melhores. Trouxemos-te porque te
queremos melhor do que nós.
Ver-te dormir - e como tu dormes minha filha, com que talento!
- repousa-me (e regera-me) mais do que o meu próprio sono. Anseio por
ouvir a tua primeira gargalhada. Sei que isso me fará ainda melhor. Não
conheço som mais iluminado do que a gargalhada de um bebé.
Bem vinda, pois, minha filha. Choveu há pouco. O céu está limpo. O mundo está agora a começar.
Lindo! Obrigada pela partilha Joaninha :)
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